sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Maracujá

Nascer e viver
Todos os dias
Para um dia, quem sabe,
Poder morrer

Correr, cair e levantar
Correr, cair e levantar
Correr, cair e levantar, correr...
Para tentar se sentar

O espelho enforca
O espelho não deixa ver
A realidade só é vista 
Por apps de filtros 

É a revolução do século!
É a revolução!
O amor próprio vendido
Em garrafas biodegradáveis

Já podemos todos nos acalmar
Agora é permitido 
Soar soez
Fizeram uma série sobre isso

Contanto que se consuma
A gente pode se sentar se consumirmos
Não pisque!
Você não pode perder NADA!

Agora relaxe e reclame
Use todo o ar de seus pulmões
Para sufocá-los
Você poderá se sentar num trono de razão
Se você não calar a boca

O like é o alimento da alma
Scroll, scroll, scrollar
Você não vai querer perder nada
Scroll, scroll, screw you

Não há saídas
Estamos num labirinto paradisíaco
Não pisque!
Você não vai querer perder NADA!

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Interrupção

Ele era feito de madeira oca
Mas usava um cachecol

Olhos tortos
Sua boca era
Uma estrada
Esburacada

De sorriso e
Palavras moles
Que desciam pelos ouvidos
Como penas caindo no chão

Ele deixava o ar doce
Trazia flores nos bolsos do casaco
Mas os seus pés sujavam até a terra

Ele se vai abruptamente
No meio do chá da tarde
Derrubando mesas e corações

Ele abandonou a nós todos
E ainda disse tchau
Ele se foi
Rasgando o ar

Deixou apenas uma trilha imunda
Cacos para juntar
E ainda olhou para trás
Acenando o braço

Ele se foi

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Maçaneta inútil

Ele era só mais uma porta
Que trancava coisas que eu não queria abrir

Um bela porta
Com enfeites
Uma maçaneta ornamentada
Ótima madeira

Eu ainda tinha esperanças
De que portas fossem como janelas
Mas aquela bendita porta
Continuava a me levar para onde eu não queria ir

E toda a vez que eu a abria
Esperava me surpreender
Mas ela ainda guardava paredes monótonas
 
Às vezes eu gostava de olhá-la
Parecia guardar os mais belos segredos
Talvez uma passagem para um mundo secreto
Ou um quarto misterioso
Havia dias que eu podia jurar que ali dormia criaturas fantásticas,
O fantasma de um rei, um anel mágico, talvez um pássaro falante...

Mas toda a vez
Em que eu abria aquela merda de porta
Eu só enxergava paredes monótonas
Nem um maldito quadro, ou um pouco de poeira

Era só um porta
Bela porta
Que dava para o nada

UE EU

Eu
Eu não sou eu
Eu nem sei se sobrou um eu para chamar de eu

Só sinto saudade de mim
E me observo e não me vejo
E no espelho quase não me reconheço

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Náufrago

Mar e céu
E mais nada há
O espaço entre
Colapso

Eletricidade
É a revolução do átomo
Carbono por carbono

Sólido
Solitude
Solidão

Nada há
Além do céu e mar
Eles se beijam
Onde o infinito termina

Na imensidão da inexistência
Afogar-se num vácuo de solidão

E mais nada

Nada mais há
Nada há

terça-feira, 11 de junho de 2019

Lâmpadas quebradas

Ombros tensos 
Olhares nômades 
A infecção se espalha

A gota percorre o corpo
Ignorando a densidade do tempo
Caindo sobre um chão que os pés não sentiam

Pelo buraco na janela
O Sol lembrava do fim

O ladrão já espera à porta
O silêncio era o vento 
Que tentava empurrar a montanha

Mãos agarram a chuva
Numa tentativa inútil de matar
A sede que destruía 
O rio é a liberdade
Que aniquila

O limbo e o labirinto
Foram feitos de lar 

O jantar era servido ao corpo inerte
Pontualmente às 18h

Mas se puder olhar além da gaiola 
Verá um céu sem lua

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Fungo

Quem bate à porta?
Entrou sem ser convidado
Já se sente em casa, o estranho
Pede uma xícara de café
Diz que veio para ficar

Pôs os pés sobre a mesa
Jogou o casaco no chão
Me chamou intimamente
De apelidos que não tenho

Escolheu discos que detesto
Me tirou para dançar
Suas mãos escorregavam demais
Seus olhos eram incêndios

Disse que eu era muito recatada
E deveria usar vestidos de festa
Tirou as fechaduras das portas daqui de casa
Rasgou as cortinas, quebrou os vidros das janelas

Tirou zilhões de espelhos da mala
Disse que narcisismo era a tendência do século
Falou que era para o meu bem
Que eu não me amava o suficiente

Jogou fora todos os meus biscoitos
Falou que a frutose me mataria antes dos 30
Pintou minhas unhas e lábios de vermelho
Cortou os meus cabelos

Se livrou dos meus gatos, era coisa de bruxa
Segundo ele... NÃO!
Primeiro ele, primeiramente ELE, sempre!

Era o exemplar modelo de quem eu deveria ser
Um homem de visão
Um homem de garras
Um Homem!

Me deu livros de autoajuda
Que era para eu me educar
Ser transcendente, de outra frequência de universo

Eu me perguntei onde está a minha casa
Me encontrava num labirinto de espelhos
Com um rosto que não reconhecia
Num vestido que não escolhi
Com a cara pintada como uma garota que não sou

Na minha porta havia uns cem pares de mãos
Todas se ofereciam para me ajudar
A me transformar, me libertar, me desabrochar
Na exata cópia delas.

Soturno

Olá, estranho ladrão
Sempre caminhando como um gato na noite
Com suas macias e silenciosas patas
Pisando em almas e sangue

Mais um pouco de vinho, por favor
Para aquele que não se embebeda
Uma salva de palmas
Para o mentiroso

Cantaria comigo
No meu mundo de fantasia?
Daria me a honra de uma dança
Na minha vida de mentirinha?

De choros e demolições
Você fez o seu trono
A minha prisão
As nossas cicatrizes

Em um oceano raso
Eu tento me afogar
Tento inutilmente cobrir
Os meu ouvidos com água morta
Para não escutar
O lamento de todos ao meu redor

Eu arranquei meus olhos
Comi a minha pele
Fiz instrumentos musicais
Com meus ossos e tripas
Para te tocar
Canções de amor
Que você não ouviu