sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Aquela que não enxerga

Os dentes se apertavam

Se fazia força para abrir as mãos

As palavras asperas se jogavam da boca numa avalanche

E se dispersavam pelo ar como bombas atômicas


O sangue que saía da língua

Alimentava o próprio corpo


Se passaram dias, meses, séculos

E continuava a observar os olhos opacos

Sem conseguir perceber a grandeza do outro


Num labirinto para se achar

Voltando inconscientemente aos mesmos olhos

Que choravam aos seus pés

Querendo ser sentir existentes


Mas não olhava para trás ou para baixo

Sua visão era como uma flecha

Que não prestava atenção nem no ar que rasgava


E mesmo a dor de perfurar e ser perfurada

Mesmo os berros que chicoteavam os ouvidos

Eram apenas ondas invisíveis de medo 

Que manipulavam subliminarmente


A pele irritada, vermelha, machucada

Separava os dois ou mais seres

Que brincavam de se apunhalar sorrindo

Pois eram um do Todo

Mas escreviam com mãos opostas


A noite se tornou fria

E fez-se uma fogueira com seus cabelos

Seus ossos se dissolveram com o Sol

Que pelo contraste mostrava uma nuvem de poeira

A qual os atômos dela se misturaram 

Para formar uma montanha

Para que os pés daquela que É um dia pisar

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Ossos lisos

 Eu não posso ser essa pessoa

Sinto muito, na verdade não consigo saber o que sinto

Mas eu não posso ser essa pessoa


Meus dedos estão enfaixados 

Os cortei para ver o sangue escorrer

Pelas minhas pernas e chão


Eu não sei cantar

E acho que isso é um problema seu

Nunca gostei de olhos que procuram pelo amor que lhe foge pelas lágrimas


Você me escreveu com suas mãos sujas de ar

Disse que eu a magoei

Por não te deixar me transpassar


Não faz sentido deixar-te me torturar 

E esperar que eu sorria

Você se ofende para não se olhar


Sinto muito, na verdade não consigo saber o que sinto

Mas eu não posso ser essa pessoa

Que senta para te assistir trançar meus cabelos arrancados


Que você se coma e se digira

Eu não quero te ouvir chorar

Por eu não querer seguir suas regras


Eu não sou a sua tentativa de reviver

Os braços que te amaram com sede

Eu não quero te salvar de ti


Eu sei que não pode ver com o meu coração

Eu posso soar cruel

Eu só quero ir embora para casa


Eu não posso ser essa pessoa

Sinto muito, na verdade não consigo saber o que sinto

Mas eu não posso ser essa pessoa que fica em sua casa

sábado, 25 de julho de 2020

O Relógio

Seu rosto era como se a gravidade a tivesse socado
Aqueles olhos perdidos dançavam
Procurando uma resposta no céu
Os pés fora do chão, enfiados numa nuvem líquida

Ombros cansados, curvada sobre ilusões
Ela passava pela rua,
Em todos os fragmentos do tempo de uma vez
Como se não passasse

Nem a dor a alcançava
Com a alma perdida em alguma data
Ela corria atrasada para o passado

Ridiculamente beijava um fantasma
De um homem que não existiu
O chamava para valsar
Esperando o seu "não"

Tentava se segurar
Enquantos as horas caiam sobre ela
Como dominós

Tomava café com a morte
Tinham conversas desinteressantes
Suas unhas caiam nas xicarás
Ela as engolia junto com algumas palavras

Não sei se viveu
Mas nunca deixou de existir
Todos os momentos do tempo
Ela passa pela rua

O que te disseram para dizer

Você diz que me ama
Mas você nunca olhou para mim
Você nunca me viu
Sem seu véu de projeções

Eu vejo seu sangue no chão
Escorrendo da sua boca e peito
Como um vidro que se parte ao beijar o chão
De novo e de novo

Consegue me ouvir chorar?
E quando eu sinto tanta dor que me machuco?
Consegue sentir meu corpo falecer nas suas mãos?
Você só me vê sentada a te olhar e sorrir, não é?

Os seus lábios desincronizado do coração
Vomitando as mesma palavras
Sem nunca se ouvir
Se afogando nelas como se fossem de verdade

Eu já morri há tanto tempo
E você continua a vestir-me
E a me dizer boa noite

quinta-feira, 11 de junho de 2020

L

Os olhos dela
Cansados e cegos
Pela luz, fina e aguda
Como uma espada

Com seus passos desnorteados
Andava pela noite escura
Uma dança de bêbada
Nunca tinha andado sem enxergar

Tropeçou em algo macio e morno
Não podia dizer
Se era vivo ou recém morto
Talvez respirasse

O vento lhe cortava inteira
Os lábios sangraram
Quando ela tentou 
Se manifestar

O pânico
A chuva
O chão
O corpo

Ela olhou para os céus
Como quem lê estrelas

Uma gota de água
Escorreu de seus lábios
Juntando o sangue e o timo

Suas memórias roubadas
Seus caminhos perdidos
Mas os pés ainda andavam bêbados
Talvez respirasse

sábado, 21 de março de 2020

Fantasia

Eu queria estar perto de você
Tão perto que eu poderia ouvir a sua respiração
Como se fosse a minha
E poder sincronizar nossos corações

Eu queria poder te alcançar
E sentir o seu calor
Tocar nos seus cabelos
Deslizar meus dedos pelo seu rosto

Eu gostaria de te beijar lentamente
Enquanto meu tato se dissolve no seu corpo
Até não saber mais separar você de mim
Até sermos um

Eu queria te abraçar
Fazendo as horas pararem
Te olhar nos olhos
Te sentir em mim

Eu adoraria poder segurar a sua mão
Te fazer sorrir
Te ouvir cantar
Sentir o seu cheiro

Se eu pudesse apenas te olhar
Mesmo de longe...
Mas nós estamos em universos paralelos
E eu nem existo


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Limão

O mundo é bem menor
Quando eu não ouço sobre o seu dia
E as intermináveis coisas que você não fez

Eu sinto falta da sua voz
E de como você canta desafinado
E mesmo assim você sempre canta

Tudo se torna rígido e cinza
Uma parede sem quadros ou janelas
Uma vida sem você



domingo, 23 de fevereiro de 2020

Beatriz

O reflexo do espelho
Vazio
Mil rostos
Nenhum era o meu

O que eu desejo
O que eu sinto
O que eu repúdio 
Fabricado

Para servir
Para entreter 
Para fazer desejar

Aquela que traz felicidade 
É infeliz

Meu rosto
Meu corpo 
Seus

Sempre atriz
Never being

Teus olhos, ouvidos e tato 
Me anulam
Minha essência se dissolve 
No seu sorriso 

Para o seu prazer
Para as suas vontades

Eu só existo quando você me vê 

Eu não consigo me ouvir
Eu não consigo me ouvir
Eu só consigo te ouvir

Eu só sou o que você espera de mim.



quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Via

É assim, novamente
Sou feita estátua
Admirada na dor e na felicidade
Apenas o que se vê

O chão, a pedra, o sangue
Se ouve de longe o riso
De quem não se afetou
Com a falta de afeto

Não visualizar-nos
Decepção invisível
O choro que não escorre
Para fechar a ferida

Errado, certo, errado
Bem e mal, mal
Tudo desmorona
Num solo idealizado na negação

Meu sangue, seu sangue
Escorre na pedra
O choro de quem
Novamente, me faz desmoronar

Para fechar, não visualizar
Faltar por bem e mal
O riso foge num riu
Que se admira,
Para causar dor e felicidade.

Leite

Dos meus maiores trunfos
Você fez seus tapetes
Que limpa os seus pés sagrados
Imaculados e perfeitos

Você me vê como a sua
Boneca quebrada
Rabiscada e imunda
Que já não pode mais brincar

Te sirvo como escudo
Alvo de seus tiros
Objeto de ridicularização
E sua muleta reservada

E quando vejo
Minha liberdade
Diz que me dará correntes
Que precisa de um corpo
Para se apoiar e esmagar
Nos dias de amanhã

Cada abraço negado
Cada afeto negligenciado
Você me sufoca
Num mar de ausência

E de tudo,
O que mais me dói
É que a cada vez que me olho
Eu vejo você